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Pezinhos de lã

Pezinhos de lã

Casa no campo

Há dias em que me apetece ir viver para o campo. Acordar ao som de pássaros primaveris e gatos lânguidos, aos quais me sentaria a coçar a barriga. Plantaria rosas de todas as cores nos canteiros do jardim e passaria horas a observar borboletas, no silêncio verdejante dos largos vales. Ao serão, beberia chá com mel, sentada no sofá, a ler um livro da imensa biblioteca que teria ou veria um filme, dos antigos.

Quem me dera viver numa aldeia de casa de pedra e lareira sempre acesa, onde os vizinhos se conhecem e se ajudam, como antigamente. Faria tricô (eu que nem sou prendada) e daria passeios, a pé, nas enseadas dos montes e à beira-rio. Comeria couves, tomates, cebolas e alfaces biológicas, e, de vez em quando, perderia a cabeça com umas boas fatias de presunto ou uma alheira caseira.

Talvez escrevesse mais, talvez cantasse, e dançaria, de certeza, rodopiando ao som de Elis Regina, com um copo de vinho tinto na mão ( e a minha cadela espantada, a olhar para mim).Saúde!

Oh, como me faz falta uma aldeia onde eu pudesse ser mais eu...

Por vezes, apetece-me fugir dos compromissos citadinos, das filas intermináveis e da frieza das caras que passam, sempre fechadas. Fugir das pressões, das promoções, dos muitos carros pára, arranca, cada vez mais caros, grandes carrões!

Oh, que cansaço o quotidiano de atas, relatórios e reuniões, de incertezas e más decisões. Que sacrifício lidar com egos inflamados, convencidos e stressados, como as vidas tristes que levam. E a economia? E os resultados? Que pena, os amigos enlatados...

Há dias em que me apetece, mesmo, ir viver para o campo...

https://youtu.be/XmEH4F8u2oY

https://www.adorocinema.com/personalidades/personalidade-813116/

 

 

 

 

Natal outra vez

Aproxima-se o Natal, outra vez.

Como hábito,  montei o pinheirinho, pendurei as luzes e arranjei um cantinho para o presépio. Por momentos, senti o coração cheio da ternura que se tem na infância, no tempo em que o tempo pára e que o Natal nos embala no sonho e na esperança de um mundo melhor, ao ritmo do piscar da gambiarra. Azul, amarelo, vermelho, verde... há como que uma urgência nesse ritmo frenético de cores, uma sede infinita de iluminar as nossas salas e casas, as nossas vidas, de iluminar o mundo...

As prendas, ansiosamente depositadas, alegram o chão castanho e frio, com os seus laços, entrelaçados de vermelho e dourado. É  uma espécie de alegria embalada, consensualmente adiada, mas certa, embora na incerteza de agradar...

Aproxima-se o Natal e, como hábito, o ambiente mágico e festivo não chega a todos: fora da nossa casa, na vida real, o mundo continua às avessas, às escuras, desorientado, e não há estrelas capazes de guiar a humanidade num caminho certo, de paz e de perdão. A malvadez e a monstruosidade do ser humano chocam os mais descuidados, incrédulos perante as imagens que os ecrãs enfatizam, diariamente..

Não se entende como a humanidade volta a cometer os mesmos erros, como se repetem as atrocidades de outrora. Não se aprendeu nada, com o passado, com a História?

É Natal, outra vez, mas não para todos...

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Uma questão de civismo

Passei uns dias de férias no Gerês.  Não conhecia e adorei os locais que visitei, embora tenha chegado à conclusão de que o mês de agosto não é o mais indicado para o tipo de turismo que eu tinha em mente: emaranhar-me no silêncio verde da Mata de Albergaria, realizando passeios tranquilos; dar lugar à introspeção e à observação da beleza deste mundo, singelamente depositada num carvalho alvarinho, num salgueiro branco ou num melro das rochas; fechar os olhos e escutar apenas o murmúrio de uma das muitas cascatas escondidas no meio do bosque... Esse era o meu inocente desejo, mas a realidade foi bem diferente, em virtude de ser agosto, o mês em que muita gente ruma ao Gerês, sendo que nem todos procuram o mesmo: eu procurava calma e sossego, outros querem emoção e adrenalina e há aqueles que nem sequer sabem ao que vão...

No Miradouro da Pedra Bela, a perspetiva que se tem, lá do alto, é estonteante. A paisagem que se observa do espelho de água ladeado por montes, árvores, pedras, estradas e povoações, parece irreal, mágica: ficamos como que suspensos naqueles segundos em que o nosso olhar procura percorrer cada metro da paisagem que ali se nos oferece ( já tinha dito que este mundo é belo?). Olha-se devagar, como que a duvidar de que estamos ali, perante um cenário tão perfeito, tão idílico, e procura-se registar na retina aquela incrível visão, para que lá fique impressa e nunca se desvaneça . E depois, claro, é necessário um momento para sair do céu e voltar à terra, para nos recompormos de tanto... Todavia, já o dissemos, nem todos querem o mesmo e, estando eu no momento de saída do transe em que me encontrava, por conta da experiência vivida, eis que me deparo com dois grupos de turistas ruidosos, sem respeito pelas pessoas que, como eu, falavam em voz baixa, num tom quase inaudível. Convém aqui lembrar que em vários locais da mata encontramos painéis informativos a solicitar o silêncio dos visitantes, para não perturbar os animais que aí vivem: nem assim.

Adoro o meu país e tenho muito orgulho em ser portuguesa, mas considero que, no geral, o português não lida bem com a disciplina, com as regras. No que toca a competências sociais, nomeadamente de civismo, ainda há muito a fazer. Comparei a atitude de turistas estrangeiros, que se encontravam nesse mesmo local, com os turistas portugueses: os primeiros, mal se dava por eles, enquanto que os outros nada queriam com a discrição: tiravam dezenas de fotos, em poses diversas, falavam aos berros uns para os outros, repetiam a mesma piada várias vezes para garantirem que todos a tinham ouvido e riam-se das suas próprias piadas, sem respeito por quem estava ali à procura de tranquilidade, de comunhão com a natureza, que só em lugares assim se encontra.

Estes, (pensei), vêm ao Gerês sem terem a noção do sítio para onde vão: como se fossem para um arraial popular!  Nada contra ir a festas da aldeia, eu também as frequento e gosto da energia que ali se encontra: a música, as gargalhadas, o "conjunto", as pessoas a dançar, as farturas, a procissão e as bandas de música que a acompanham, os foguetes e os Zés-Pereiras... Está tudo certo, mas cada momento, cada lugar tem os seus próprios códigos que nós, portugueses, ou pelo menos muitos de nós, temos problemas em seguir.

Vivemos num tempo estranho, em que tudo se confunde e quase nada se respeita. Vivemos obcecados connosco próprios, concentrados nas nossas vontades e nas nossas necessidades.  Falta-nos empatia, respeito pelo outro, sentido de grupo, em última instância, carecemos de civismo.

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https://www.tripadvisor.pt/Attraction_Review-g1514529-d7895801-Reviews-Miradouro_da_Pedra_Bela-Geres_Braga_District_Northern_Portugal.html

Alain Delon e o desejo de voltar a ser criança

Recentemente, o cinema francês perdeu outro ator da velha guarda. Para além de ser considerado um dos maiores atores franceses de todos os tempos, Alain Delon foi um ícone da beleza masculina, um homem verdadeiramente lindo, possuidor de um olhar profundo, cheio de magnetismo. Vingou profissionalmente, atingindo rapidamente o estrelato no cinema francês e europeu, e, a título pessoal e sentimental, foi loucamente amado, por diversas mulheres, também elas belas e maravilhosas musas.

Com tantos atributos, Alain Delon teve uma longa e preenchida vida, tendo falecido aos 88 anos. Surpreendentemente, quando um jornalista lhe perguntou, há alguns anos, o que pediria, se tivesse a possibilidade de um último desejo, o ator respondeu que gostaria de ver os pais juntos, pelo menos uma vez, pois estes separaram-se quando ele tinha apenas 4 anos, facto que contribuiu para que o ator tivesse conhecido uma infância difícil e problemática. 

Fiquei a refletir sobre este pedido inusitado de alguém como Alain Delon. O ator nada pede em termos de carreira (entrar num filme específico, trabalhar com um determinado realizador,  contracenar com este ou com aquele ator ou atriz, ter uma carreira em Hollywood...), não pede mais  fama ou projetos desafiantes, nem sequer a oportunidade de rever o seu grande amor, a atriz Romy Schneider...Alain Delon, que tudo teve, tudo experimentou, tudo viveu, afinal, na fase madura da sua vida, só queria voltar a saber o que é ser filho e viver a experiência de se sentir, novamente, um menino, uma criança, no seio de uma verdadeira e aconchegante família...

Confesso-me sensibilizada com este testemunho de Alain Delon que, de certa forma, reforça a minha convicção de que os adultos não têm a necessidade, nem a obrigação de fazer filhos, mas os filhos, esses, precisam, obrigatoriamente, de ter uma família. Por isso a questão da parentalidade é tão importante, por isso, a opção de não se ter filhos é tão válida como a de os ter ou de os adotar. Ser pai, ser mãe, é, na maior parte dos casos, uma escolha, uma decisão que, embora pessoal, implica um enorme sentido de responsabilidade para com outro ser humano, que não pediu para nascer, mas que alguém colocou neste mundo. O dom de dar a vida é algo maravilhoso, mas deve ser, em qualquer circunstância, o assumir de um real compromisso para com a criança, assegurando as suas necessidades básicas e essenciais, mas também cuidando, educando, formando, orientando, apoiando, sobretudo amando-a, de forma incondicional.

“Grande é a poesia, a bondade e as danças… Mas o melhor do mundo são as crianças”, já dizia Fernando Pessoa. Subscrevo as palavras do poeta (às quais acrescento que grande também é a música, o vinho, as flores, os gatos e os cães...), pois considero que elas, as crianças, são o nosso bem mais frágil, mas de longe o mais valioso, elas são o futuro da humanidade, e por essa razão, também devem ser o tesouro mais protegido, por todos.

Há instituições que substituem a família quando esta não existe ou se encontra debilitada ou desestruturada, incapaz de assegurar o bem-estar das crianças. São locais onde se tenta proporcionar a vivência numa comunidade, com características semelhantes a uma família. Não sendo o ideal, na minha opinião, pois nada se iguala a uma verdadeira família, são um recurso útil e muito necessário, realizando um trabalho assaz importante quando os pais não conseguem exercer o seu dever de parentalidade.

Por outro lado, o conceito de família tem sofrido algumas alterações, sendo que, a par da família tradicional, existem atualmente outras formas de família, com igual capacidade para acolher, criar e amar uma criança, mesmo que o assunto permaneça, ainda, bastante polémico.

Seja como for, julgo que devemos manter o foco no que verdadeiramente interessa para a felicidade das crianças. A noção de pertença a uma família, os laços que nela se criam, as vivências e as memórias que se vão construindo são fundamentais: uma infância feliz reflete-se, forçosamente, na plenitude da vida adulta.

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https://indie-cinema.com/2024/08/alain-delon-iconic-french-star-and-cinema-legend-dies-at-88/

 

Marés vivas - agosto 2024

E, quando finalmente o sol convida a banhos, o mar vem lembrar e reduzir-nos à nossa insignificância, exibindo a sua enorme vontade e o seu grandioso poder, ao invadir cada pedacinho da imensa praia. E, do T2 calculadamente edificado na areia (cata-vento, chapéus, toalhas, cadeiras...), acaba-se, afinal, simples e precariamente sentado numa pedra, em bicas de pé, a admirar este indomável e atrevido animal chamado mar que, sorrateiro e vaidoso, continua num frenético vaivém de água gelada, desdenhando das nossas matemáticas....

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Barbie ou o drama da (im)perfeição

Que me lembre, só tive uma boneca na minha infância. Era uma espécie de Nenuco, (mas dos baratos), com uma abertura nas costas, onde repousavam umas quatro pilhas que lhe permitiam dizer umas frases, sempre as mesmas e das quais já não me lembro. Quando me fartei daquela conversa, cortei-lhe o cabelo loiro à escovinha e desenhei-lhe uns riscos na cara, pelo que a boneca foi parar ao chão, a um canto do meu quarto, o olhar azul esguelha virado para o soalho, e eu continuei com as minhas brincadeiras na rua, com os meus amigos de bairro.

Acho que nunca fui de bonecas.

Por falar em bonecas, vi (finalmente) o filme Barbie. Não é tão mau como parece, pensei, ao recordar-me dessa minha boneca e das que comprei para a minha filha, essas já Barbies verdadeiras ( ou imitações, quando as finanças não permitiam devaneios...)

Margot Robie encarna na perfeição o papel da Barbie estereotipada: uma boneca perfeita, vivendo uma vida igualmente perfeita, num mundo sem defeitos. Tudo está previamente definido para que nada perturbe a tranquilidade da vida destas bonecas e bonecos, onde cada um sabe e aceita o seu papel, o seu lugar... Não há reflexões, dúvidas, questionamentos ou discórdia, apenas uma direção, um rumo, igual para todos e todos são felizes neste universo cor-de rosa...

Afinal, há muito para dizer deste filme, aparentemente simples e inocente, com o propósito de entreter crianças (?) e adultos.

Muito se tem falado da igualdade e dos papéis de género, ultimamente, e o assunto tem vindo a ganhar cada vez mais importância, à medida que vão caindo alguns estereótipos e se começa a aceitar e a respeitar o que é "diferente" do que estamos habituados a ver e conhecer.

Sair da sua cidade, no interior norte do país, e mergulhar numa cidade grande, permite a observação de um manancial de pessoas, com estilos e modos de ser e de estar na vida muito distintos.Viajar, é sair do seu minúsculo casulo e ousar compreender o mundo, na sua diversidade. Viajar é, portanto, uma oportunidade de chegar muito perto do seu entendimento. Viajemos, então!

A Barbie deste filme escolhe ser mulher, sujeitando-se, sem drama, a essa condição. Ao invés de permanecer uma boneca de plástico, eterna e bonita, ela quer uma vida própria, que possa escolher e viver, ela mesma. Esta Barbie abdica de uma vivência perfeita, optando pela imperfeição de possuir um corpo de mulher, com direito a rugas, cabelos despenteados e brancos, a estrias, celulite,  olheiras e borbulhas, com dores de período e de parto... Esta Barbie não quer ser apenas uma cara bonita, mas sem graça: ela deseja ter uma profissão, traça o seu caminho e faz por viver a sua vida de forma intensa...

Esta metamorfose, não é pacífica nem fácil, encontrando a nossa Barbie vários obstáculos à sua transformação, mas a sua decisão é definitiva e irreversível: a Barbie será quem ela quiser ( e não o que alguém definiu que ela fosse...) 

Gostei da bravura desta Barbie e, sobretudo, admirei a sua vontade de ser mais do que um corpo ou um rosto giro, bem como apreciei a sua ânsia de querer vencer por si própria e não crescer à sombra de um qualquer Ken, escolhendo ser a protagonista e não uma personagem secundária da história...  Com esta Barbie eu jogava à bola, na minha  rua, mais os meus amigos de bairro.

 

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https://www.infomoney.com.br/consumo/filme-barbie-ultrapassa-us-1-bilhao-em-bilheteria-na-3a-semana-apos-lancamento/

 

 

 

 

 

 

Teoria do desapego ou a imensa ternura dos 50

Dei por mim a pensar seriamente no significado da vida.

Acho que acontece a todos, depois dos 50: os filhos terminam os estudos, concorrem ao primeiro emprego, apaixonam-se perdidamente e nós começamos a perceber que o caminho restante é bem mais curto do aquele que nos trouxe até aqui.

Então, pensamos se faz sentido continuar com tanto peso em cima das costas ou se é o momento de começar a deixar para trás o que, na verdade, já pouco importa (importou algum dia?).

Passamos grande parte da vida a valorizar o ter, aliado a uma necessidade, por vezes doentia, de o mostrar : a casa ou o carro novo,  as roupas de marca, as jóias...  Compramos, acumulamos, preenchemos os nossos vazios com o que é material, iludidos com uma falsa ideia de felicidade. É o jovem ego a alimentar-se, de bens, de poder e estatuto, de orgulho e de vaidade...

Por isso, chegados ao outono da vida, é comum fazer-se uma reflexão profunda e querer libertar-se das amarras, largar essa pele, abdicar do que temos e somos em exagero e começar a valorizar outras coisas, realmente importantes: as coisas simples.

É nesse ponto que me encontro: num estranho ponto de desencontro e de desapego,  nessa imensa ternura dos 50...

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Querida mãe

Hoje, recupero um texto que escrevi há uns anos. Foi publicado no jornal da escola onde eu trabalhava, no espaço da "Crónica sem vergonha". Agora, talvez sugerisse a alteração da rubrica para "Crónica com orgulho", pois é orgulho que sinto quando recordo os meus pais, infelizmente já desaparecidos, as pessoas simples, íntegras, autênticas e generosas que eram e assim ficarão, para sempre, no meu coração e na minha memória. 

"A minha mãe morreu a 4 de janeiro de 2006. Não consegui, durante muito tempo, imaginar o que seria o resto da minha vida sem ela. Não se ultrapassa a morte de uma mãe, pois não há nada neste mundo que a substitua. Comemos rebuçados de mentol para compensar a falta do cigarro, trocamos de carro, de casa, de emprego, de cidade, de amigos e até de amores, mas não trocamos a nossa mãe por nada. A nossa mãe sabe sempre o que nos vai na alma. Faz o nosso prato preferido quando a visitamos, acende aquela magnífica fogueira ou o fogão a lenha e nada se iguala ao cheiro que emana dos seus cozinhados, ao calor do lume e dos seus braços. Ela é o alicerce, a casa, a força que empurra e faz andar as nossas vidas e o mundo.

Com tenra idade, a minha mãe deixou a aldeia e partiu para "servir", em Lisboa. Os tempos eram difíceis e cabia aos irmãos mais velhos ajudar a sustentar a família. A minha avó, viúva, com sete bocas para alimentar, não viu outro remédio senão aceitar que os filhos, ainda crianças, fossem trabalhar, nem que fosse por uma tigela de caldo e um abrigo. As raparigas tinham mais sorte e, normalmente, eram requisitadas como criadas, nas grandes cidades, nas grandes casas, dos grandes senhores. Era assim a sociedade de então, já tão estratificada e injusta, onde a infância era roubada e maltratados os meninos, a quem era exigido que fossem adultos ( "o trabalho do menino é pouco e quem não o aproveita é louco", diz a sabedoria popular...)

Só muito tarde decidi arrumar o quarto dela: dei as roupas e o calçado e guardei os óculos de ver, de massa cor de rosa. Tentei arrumar na minha cabeça que a tinha perdido. Como se arruma na nossa cabeça a morte da nossa mãe? Deixamos sempre para mais tarde as decisões difíceis. É uma forma de adiar os problemas, esperando que uma força superior os resolva, sem dor, sem lágrimas, sem perdas, sem arrependimentos. Alguém me diz como se arruma, na nossa cabeça, a morte de uma mãe? Como se aceita que não a voltamos a ver, a ouvir, a beijar? 

Em Lisboa, a minha mãe sofreu muito. Era uma pobre rapariga da aldeia que nada entendia de cozinhados, rendas ou ferros de engomar. A patroa era uma mulher dura, exigente, que adotou, como método para educar os filhos, as criadas e o marido, uma espécie de regime militar. O Toninho e o Manelinho não podiam pisar o risco, pois esta mãe ditadora não perdoava e transformava-se no pior carrasco da história da humanidade. Com as criadas não se atrevia a tanto, mas também as castigava, humilhando-as, fazendo-as repetir vezes sem conta a mesma tarefa, até ficar perfeita. "Isaura, esta camisa está mal passada. O senhor não pode andar na rua com uma camisa neste estado". Mergulhava-a novamente no tanque de lavar a roupa e a Isaura tinha de recomeçar a operação. " Ficava-lhe com uma raiva, nem imaginas!", confessava muitos anos depois. " O que será feito dos meninos? Que pena que eu tinha deles, levavam tanta porrada...", concluía.

(Agora já consigo falar dela. Sem raiva de não a ter ao meu lado, sem revolta por me ter deixado tão depressa, quase de surpresa. Consegui arrumar o quarto e deposito flores na sua campa, mas dói, continua a doer esta ausência imposta, cruel - esta terrível saudade).

A minha mãe era uma mulher muito bem-disposta. Na sua mesa havia sempre lugar para mais um e partilhava, generosamente, o que tinha. Adorava estar rodeada de gente feliz, que escutava atentamente as suas histórias e canções. Mesmo quando a doença a impediu de ter uma vida com qualidade, presenteava os filhos com as "modas" aprendidas na sua mocidade, em Lisboa. Recordo a quadra de uma, em particular, a que ela chamava de "A maldade das mulheres". Não conheço a autoria, mas imagino-a cantada por uma voz e um estilo únicos, ao jeito do Marceneiro. Era, mais ou menos, assim: " As mulheres são interesseiras, falsas e coscuvilheiras, não se engana quem disser. Sempre a falarem da vida, não há língua mais comprida, do que a língua das mulheres". Os risos soltavam-se à sua volta e as cantigas lá continuavam, noite fora, como se o tempo tivesse ali parado, como se nada mais interessasse para além daquele lugar, daquelas gentes simples, da mesa, cúmplice da nossa alegria.

A minha mãe brilhava mais que as estrelas reluzentes das noites de verão... e sabia-o..."

 

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Canção de ninar da mãe · Creative Fabrica

Sei quem és- (Sé Quien Eres)

Segui, na RTP2,  a série espanhola "Sei quem és" (Sé Quien Eres).

Há muito tempo que não via uma série policial/thriller tão intensa e viciante. Vi os 16 episódios com o mesmo entusiasmo e fiquei muito triste quando terminou. A história é intrigante, o desempenho dos atores espetacular, o ritmo da ação estonteante.... Nada, nem ninguém é o que parece e vale tudo para alcançar o que se quer. Não há amor ou amizade que se sobreponha aos próprios interesses de gente egoísta, mesquinha e sem escrúpulos. Um retrato duro ( mas realista?) de uma certa elite que tudo consegue, com dinheiro, poder e conhecimentos. Para quem não assistiu, pode fazê-lo na RTP Play. 

"Criada por Pau Freixas, a série conta no elenco principal com Francesc Garrido, Blanca Portillo, Aida Folch, Carles Francino, Antonio Dechent, Nancho Novo, Eva Santolaria, Mar Sodupe, Martiño Rivas, Alex Monner, entre outros. A trama segue Juan Elías (Garrido), um brilhante advogado e professor universitário, casado com a juíza Alicia Castro (Portillo) e pai de dois filhos. Um dia, aparece a vaguear por uma estrada, ferido e em estado de amnésia total. Horas depois, a polícia encontra o seu carro acidentado e no interior o telemóvel e vestígios de sangue da sua sobrinha e estudante, que não é vista desde então.

Foto/Divulgação: © Mediaset España

O pai da jovem, Ramón Saura (Novo), está convencido que o seu cunhado a assassinou e vai fazer tudo para o provar. Ramón contrata a advogada Eva Durán (Folch), uma ex-aluna de Juan, que está convicta que a amnésia é uma desculpa para esconder o terrível crime. Todas as evidências apontam para a culpa de Juan, mas devido à amnésia, o advogado nem sabe se é inocente ou não. Com a ajuda da mulher tenta recordar o que aconteceu. A busca colocará as duas famílias em confronto, o tio é o principal suspeito."

Duas famílias em confronto. RTP2 estreia a série espanhola “Sei Quem És” – Cinevisão (cinevisao.pt)

 

Hoje, o meu filho faz anos

Costumo dizer que as coisas acontecem na nossa vida no momento certo, assim como as pessoas. Umas vão ficando, de forma intermitente ou para a vida, outras desaparecem, por vezes sem deixar rasto. Há as que nos ensinam a paciência, o perdão e a tolerância, outras a sermos organizados, trabalhadores e resilientes. Há as especiais que nos cuidam, dispostas a ouvir-nos, sempre, e as que nos levam para a loucura e diversão, pois a vida são dois dias ( e se têm razão!). Por vezes, com sorte, há as que nos ensinam o amor e há as que só interessam para percebermos como não queremos ser, jamais.

Tenho seis irmãos, sou tia e tia-avó de muitos meninos que, do meu modo, ajudei a criar, pelo menos nas férias de verão. Essas minhas “férias grandes” eram passadas, maioritariamente, na companhia dos meus sobrinhos, miúdos ainda (eles e eu),  que iam comigo para todo o lado: ao café, às festas da aldeia, ao rio ( que na altura ainda estava limpo), à praia. Por essa circunstância, sempre gostei de crianças e sempre desejei, também eu, ter os meus próprios filhos. Julgo até que foi esse convívio, essa partilha de afeto e esse sentido precoce de responsabilidade que, mais tarde, pesou na escolha da minha profissão, mesmo que não o soubesse, então.

Depois de acabar a minha licenciatura e já a trabalhar, aconteceu o meu filho.

 O meu filho apareceu na minha vida no momento oportuno. Nem tarde, nem cedo. Curiosamente adivinhei-lhe as feições: loirinho, de cabelos aos caracóis e de pele branquinha. Assim seria o nosso bebé, como um anjinho, dizia eu ao seu pai. Nunca acertei em jogos de sorte e de azar, mas aí não falhei. Nasceu a 14 de outubro, de 1999, mais cedo que o previsto, exatamente como o tinha imaginado, mas mais pequenino e com muita vontade de continuar no seu mundo de água, calmo e tranquilo. Nascer acaba por ser a nossa primeira grande perda e o nosso primeiro desafio. Teremos essa consciência no momento em que deixamos a segurança e o conforto da barriga da nossa mãe para entrarmos num mundo desconhecido e profundamento perigoso? Será esse primeiro choro fruto das nossas dores de parto ou já a intuição do que nos espera?

Cada velho é um jovem que pergunta o que aconteceu, li há dias. Nada mais verdade. A vida aconteceu e hoje o meu filho volta a fazer anos, é o seu 24º aniversário.

 “Ainda não escreveste nada sobre mim no teu blogue, mãe”, queixou-se há dias. E com razão. Mas sabes, filho, falar do que nos é mais precioso é mais difícil do que parece, porque as palavras, quando vêm do coração, têm de fazer um percurso maior e, por vezes, perdem-se nas curvas das memórias, dos carrinhos de brincar que tinhas e com os quais andavas sempre atrás de mim, mesmo quando ia à casa de banho, escondem-se no teu riso fácil e na fofura dos teus beijinhos e das tuas primeiras palavras, espreitam nos dentes pequeninos e branquinhos que te caíam e na moeda que a “fada dos dentinhos” se esquecia de te dar, por vezes, pois a mãe estava demasiado cansada para se lembrar de ta colocar na mesinha de cabeceira, à noite. As palavras encontram pontes caídas, de medos de febres altas e de falta de ar que herdaste da tua avó, minha mãe. As palavras também se perdem quando amam muito, mesmo quando, mais tarde, deixei de te dar beijos no portão da escola e comecei a dormir menos, de olho na tua cama ainda vazia ( e já é tão tarde, onde andará?), ou quando fizeste a primeira mala, de partida para Coimbra,  e eu a disfarçar os meus receios com  tuperwares cheios de comida, para as primeiras refeições,  “mas depois vais à cantina e comes a sopa toda, não te esqueças, João, e a fruta” ... é a vida a acontecer, filho.

Perguntaste-me, há dias, o que é que eu faria se tivesses de ir para a guerra. A questão apanhou-me desprevenida e balbuciei que, se isso acontecesse, terias de ser tu a decidir e eu aceitaria a tua escolha, por mais que me custasse , “pelo meu país, não podia recusar...”, concluíste.

 Agora, passado o tempo da resposta politicamente correta, sei que no meu mais profundo eu, tal não seria possível: tento imaginar-te vestido de verde, de capacete negro e com uma arma a tiracolo, a partir para um cenário horrível de dor, morte e destruição e juro que só consigo ver o meu menino, pequenino, a descer inseguro a rampa do colégio, com a mochila do Picachu às costas, a virar-se para mim (ainda à espera) e a acenar-me um até logo, a acenar-me um gosto muito de ti, mãe, és a melhor mãe do mundo...

O que faria eu se tivesses de ir para a guerra, meu filho?

 Provavelmente morria...

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