Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Pezinhos de lã

Pezinhos de lã

Mia Couto e a escrita de inventar de palavras

Mia Couto é um dos meus escritores favoritos. Li a maior parte dos seus livros e, sempre que o faço, encontro mais motivos para gostar, cada vez mais, da forma como escreve.

O que mais me fascina são as histórias e as personagens que traz para os seus romances /contos e que nos transportam, imediatamente, para África: os seus lugares, as  cores, os sons, os cheiros e as suas gentes. Mia Couto é a voz escrita de todo um povo e da sua vivência, da sua História e histórias, dos seus mitos, ritos e tradições, das suas línguas e linguagens, da sua cultura.

Há dias descobri, por meio de um programa da RTP, que as pessoas procuram o escritor para lhe contar esta ou aquela história que ouviram a um velho contar, ou um determinado acontecimento presenciado que acharam digno de registo. Procuram, inclusivamente, Mia Couto, quando inventam uma nova palavra, adequada e útil a um certo contexto ou apenas curiosa ou engraçada. Sabem que o escritor aprecia estas invenções. Mia, grande escritor e ainda melhor ouvinte, escuta com atenção (e com aquela genuína humildade que já lhe conhecemos) todos os relatos que, muitas vezes, usa depois na sua escrita. Eu acho isso incrível.

Saramago tem uma expressão parecida com esta “ Somos todos escritores, só que uns escrevem e outros não”. O que me diz esta frase é que todos temos histórias de vida para contar. Qualquer vida daria um romance. Mas, na verdade, nem todos temos o que é necessário, aquele dom de transformar as vivências em palavras, as palavras em frases e as frases em textos que alguém queira ler.  No caso de Mia, apetece-me dizer que é preciso muito desse talento, mas que é necessário, sobretudo, ter uma grande alma, um fundo muito bom e amplamente iluminado para realizar uma obra assim: a de colocar no papel não apenas as  palavras, as histórias que ouve e inventa, mas tudo o que elas são e encerram em si, tudo o que elas representam e significam.

Há anos, alguém me dizia que existem palavras para tudo,  para todas as situações, sentimentos, estados, emoções e que o problema, na realidade, éramos nós, que não as sabíamos todas. Por isso, concluia o meu interlocutor, não faz sentido dizermos, perante uma fatalidade, por exemplo, “ Não há palavras”, porque as há. Na altura achei que estaria certo, mas isso foi antes de Mia, era ainda noite.

Nem sempre as palavras que existem são suficientemente capazes de exprimir uma ideia, um conceito, um estado de alma. Por vezes e por melhores que sejam, não chegam, não têm força, substância suficiente. Isso eu aprendi com Mia e com a sua incrível fábrica de fazer palavras, a sua escrita de as inventar.

Por vezes ainda me falham as palavras para falar de certas coisas e de pessoas que já não vejo, nem abraço. Uma delas era a minha mãe. É engraçado haver pessoas que não são muito de palavras, são mais de risos e de olhares. A minha mãe era assim. Tinha um vocabulário muito reduzido, talvez porque a vida dura que teve dispensasse grandes conversas. No entanto, em caso de necessidade, também ela inventava.

Uma dessas palavras era o famoso “desinfeliz”. Cheguei a corrigi-la, mas depois deixei-a repetir as vezes que lhe apeteceu. Não teria adiantado de muito explicar-lhe que já existe o adjetivo infeliz, antónimo de feliz, e que o prefixo in ... (blá, blá, blá)... Quando parei para pensar nesta nova palavra, que ela insistia em usar, percebi o seu significado e a urgência da sua existência. Um rapaz desinfeliz não é só infeliz ( o que já não seria pouco),  ele é ainda mais do que infeliz, duplo prefixo, duplamente infeliz: desinfeliz dá maior intensidade à ideia de infelicidade do rapaz, quando o superlativo não resulta ( já imaginaram uma camponesa a dizer- Ai, coitado do rapaz, anda infelicíssimo).

Bravo. Embrulha, Colette!

Gostaria que a minha mãe soubesse que também eu fiquei desinfeliz com a sua partida.

Felizmente, ela deixou-me as palavras.

 

 

Autobiografia- José Luís Peixoto

AUTOBIOGRAFIA

Pilar bem dizia que o leitor deste livro estava avisado ao que ia. Mas eu quase me perdi neste ambicioso enredo...

Um jovem escritor, José,  assume a difícil tarefa de escrever a biografia de um grande escritor, que admira e com quem se cruzou há anos, Saramago. Porém, este jovem escritor, iniciante ainda nos meandros da escrita, vive apavorado e dividido entre a escrita desta biografia e a do seu segundo romance, que todos aguardam ansiosamente.

Ao longo deste jogo desesperante, pois o leitor observa e vivencia o drama íntimo de José, vão surgindo outras gentes, com nomes e histórias a lembrar personagens de outros livros de Saramago,  que se movimentam neste palco, trazendo à luz os seus fantasmas e as chagas das suas vidas.

O vício do jogo, o abuso do álcool, a violência,  uma cegueira repentina e inexplicável, o terror e a necessidade do segundo romance, a amizade verdadeira, o pai ausente, a mãe demente, a cadela, Cabo Verde, o cancro e o amor...

A dada altura, o leitor percebe o segredo: afinal Saramago é José, José é Saramago. E Saramago é o escritor, mas também uma personagem da história contada... E em José, encontramos Peixoto? -pergunto eu. ("Toda a obra literária leva uma pessoa dentro, que é o autor" - José Saramago).

Este cruzamento de narrativas e de personagens, em planos muitas vezes indistinguíveis ( "porque em literatura tudo é possível" ), chega a confundir o leitor, mas é também um grande e desafiador exercício de leitura.

Por isso, Autobiografia  é tudo, menos uma biografia de Saramago, acaba por concluir o leitor. Ela é, antes,  uma mescla de biografias, são os encontros e os desencontros do jovem escritor José consigo próprio, com a sua vida, com o seu mestre e com as outras pessoas que vivem neste livro. São reflexões sobre os anseios e os medos que, afinal, são de todos, reflexões sobre as decisões difíceis e tantas vezes erradas que tomamos ao longo das nossas vidas. É o sentir-se deslocado,  perdido, falhado, o "estorvo", o falhado (o egoista?). Mas Autobiografia é também sobre recomeços, novas oportunidades, é sobre encontrar caminhos e voltar a escrever, voltar a viver...

Entra-se em Autobiografia e sai-se diferente. É a beleza, o encanto e a mestria da escrita de Peixoto, presente em cada página. É a literatura ao seu mais alto nível...

Um postal de Detroit

Depois da Autobiografia, de José Luís Peixoto, decidi ler Um postal de Detroit, de João Ricardo Pedro.

Já conhecia o autor, pois lera o seu romance de estreia O teu rosto será o último. Confesso que comprei este livro pela originalidade do título, mas a sua leitura foi uma autêntica surpresa (como assim, primeiro romance, escrito na sequência de uma situação desemprego?).

Entretanto, chegou-me às mãos o seu segundo romance, cuja leitura me deixou de rastos.

Não é um livro fácil e acredito que escrevê-lo também não o tenha sido. Diria, até, que João Ricardo Pedro desceu aos infernos, abriu as gavetas mais sombrias e soltou todos os fantasmas e demónios possíveis e imaginários que encontrou para construir esta narrativa.

O livro tem por base o maior acidente ferroviário ocorrido em Portugal, em 1985 . A partir desse evento, real e dramático, o autor constrói uma narrativa onde cruza a vida de uma família que perdeu um dos seus elementos nesse acidente, a jovem Marta, com a vida de outras famílias e pessoas, mesmo que, à priori, sem relação.

O narrador, irmão de Marta, mergulha o leitor numa narrativa recheada de personagens bizarras que mantêm laços, muitas vezes, estranhos e incompreensíveis.

O que mais dói, neste romance, é a confusão entre o que é suposto ser "real", (sendo que à exceção do acidente, tudo aqui é ficção, bem o sabemos "Quanto ao resto tudo é inventado") e o que é fruto da imaginação (ou melhor, demência?) do narrador. De facto, ele é, assumidamente, um doente tratado por doença do foro psiquiátrico.

Por isso, o cruzar inusitado desses planos provoca uma certa confusão no leitor, mas é também, a meu ver, o que torna este livro único e intrigante .

Consequentemente, a sua leitura será um exercício difícil, mas muito interessante.

Para mim, a forma como o narrador transporta o leitor para a história, que é a sua, expondo-se, deixando-o penetrar no mais íntimo e profundo de si, dos seus pensamentos, medos, frustrações, desejos, complexos, enfim, na sua loucura, chega a ser acutilante e bastaria para justificar a leitura deste livro.

Mas depois, há tudo o resto: Lisboa, o seu submundo e os seus personagens; fantásticas descrições queirosianas de figuras, objetos e lugares; diálogos absolutamente incríveis; situações de humor, de rir às gargalhadas; índios e cowboys e a fantasia de um menino; os únicos anos 80; inteligentes e numerosas referências a várias formas de arte:  pintura,  ópera,  literatura; a paixão pelo Sporting e pelo futebol (tinha que ser...); jogos de palavras inesquecíveis (punk-queque- panqueca para uma punk) e tantas outras razões...

Este livro, aparentemente na linha do romance negro fala, essencialmente, sobre a perda repentina de alguém que nos é muito querido e de todas as implicações que esse acontecimento traz à nossa vida, presente e futura.

Fala da tristeza levada ao extremo da nossa loucura, da solidão aterradora, sem fim.

Mas fala também das coisas boas da vida: de amor, de compaixão e de esperança. Fala de  estorninhos-malhados, de malhas brancas na plumagem que entram em quartos vazios e de frutos que em breve estarão prontos para serem apanhados.

 

 

 

 

 

 

Deambulações poéticas de verão

PRAIA

Avós que voltam a ser meninos

Meninos a serem simplesmente crianças

E mães a serem o de sempre

 

MAR

A rebentação

No mar como na vida

Nunca acontece no mesmo tempo

Nem no mesmo lugar

 

ÁGUA

Tantas vezes

Para chegar à água

Existe um grande percurso

A fazer

 

FERNANDO

Fragmentos de tantos

E de tanto

Numa só Pessoa

 

AMANHÃ

-Queres saber a verdade?

- Só amanhã.

- Amanhã?

- Sim, é que a verdade trará consequências e hoje ainda quero aproveitar este sol.

 

AZUL

Este pedaço de mar é meu

Não adianta os chapéus

As bolas de volei

Ou as corridas pelo areal

Daqui a perder de vista

Este horizonte pertence-me

Azul

 

FIM

Tudo acaba um dia

Até o que é bom

(Quanto mais o que não presta!)

 

 

 

 

 

 

Areia quente queima os pés

A minha filha detesta pés. Diz que são inestéticos, que os dela são horríveis, assustadores...Ignora-os, usa e abusa de sapatilhas para os esconder... Em suma, não suporta esta parte do (seu) corpo e dos corpos alheios, em geral...

Não adianta dizer-lhe que os pés são raízes que ligam a nossa parte aérea, deambulante e tantas vezes errática ao chão, às coisas da terra, solidamente tangíveis... Escusado será insistir que eles são fundações, equilíbrio, sustentação e que até podem ter um papel bastante importante e decisivo em certas aventuras eróticas mais criativas e confiantes ( pelo menos no cinema funciona)...

Nunca foi, nem será adepta de pé descalço...

Não sei se foi por isso ou se foi por ter sentido , claramente, hoje, os meus pés, vivinhos da silva, a saltitar nas areias escaldantes da praia de Alvor ( pés apressados, bailarinos, pés desesperados...) que decidi iniciar este blog a falar de pés. (Podia ser pior: imaginem se me desse para falar não de pés, mas das unhas dos pés....)

De manhã, os pés costumam caminhar alegremente para a praia, adivinhando já o prazer da água refrescante que os espera ali. Mas por volta das 13 horas as coisas complicam e os pés sabem disso e sabem, ainda, que o seu destino é dar a "sola ao areal", numa corrida frenética contra o tempo...e a quentura do sol.

É verdade que nos esquecemos dos pés, tal como nos esquecemos de tantas outras coisas essenciais que estão sempre lá, que ficam, persistem numa presença e obdediência quase doentias, mesmo que sem apreço ou qualquer tipo de reconhecimento por parte de quem tanto deles usam e abusam...

 Mas voltemos ao nosso blog : pé ante pé, com pezinhos de lã? A pés juntos ou de pé atrás?

Agora vou deitar-me. Ainda assim vou aplicar um pouco de creme nos pés. Pode ser que não se zanguem e continuem a levar-me à praia por mais uns dias....

17/08/2021