Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Pezinhos de lã

Pezinhos de lã

Retrato a branco e preto

Quando era miúda, vivia numa pequena aldeia trasmontana.

Naquela altura, anos 80, muitos emigrantes tinham, como os meus pais, vindo de vez de França e,  das ex-colónias, também tinham regressado a Portugal muitos portugueses, com as  suas famílias. Por isso, as vilas e as aldeias do interior estavam cheias de gente, cheias de vida.

Eu teria 12, 13 anos e lembro-me que costumava ler e escrever cartas a um casal de idosos que vivia no fundo do povo. Nem um nem outro conhecia uma letra, de modo que, sempre que os filhos, emigrados em França, lhes escreviam era eu quem lia essas cartas e respondia às mesmas e essa era a única forma daquela família comunicar entre si, pois os idosos não tinham telefone.

De vez em quando, a acompanhar as cartas, vinham fotografias, principalmente dos netos, o que muito alegrava os avós que, cheios de orgulho, repetiam “ Olha o nosso Jonathan, que grande!; “ Olha a nossa Stéphanie, parecidinha com a Lurdes, é mesmo a cara da nossa filha!” “Que lindos meninos!”

Guardo essa memória de infância com muito carinho, pois essa função dava-me uma certa importância, mas também uma grande responsabilidade: eu era a primeira a saber das novidades, boas ou más, e cabia-me a mim a tarefa de as transmitir àquele simpático casal de idosos que, em consideração ao meu “trabalho”, me dava, de vez em quando, algumas guloseimas vindas de França. Criança, ainda, tentava cumprir da melhor forma o meu propósito, escrevendo devagar, de modo a fazer uma caligrafia bonita e redobrando a minha atenção para não dar erros. Era fiel ao que me era ditado pela Ti Maria, no seu conteúdo, mas tentava embelezar as palavras dela, transformando o seu português, rudimentar e simples, em expressões mais trabalhadas, conforme me permitiam os meus conhecimentos, na altura.

Recordo uma casa humilde e antiga, de pequenas dimensões, com uma cozinha de forno de paredes negras, onde vivia o casal e, ao lado, um pequeno anexo, mais recente e com mais e melhores comodidades, reservado aos filhos para quando vinham passar férias, em agosto. Eram assim os pais da minha infância: guardavam sempre o melhor para os seus filhos e netinhos, porque para eles qualquer coisa servia...

Era nesse anexo que a Ti Maria expunha as fotografias dos filhos e netos e também foi aí, em cima de uma cómoda de madeira escura, que vi a fotografia dele. Era um retrato a preto e branco, numa moldura prateada, do filho mais novo. Era um belo rapaz, envergando roupas de tropa e uma arma na mão. Esse filho, que sorria na fotografia, morrera na guerra da Guiné.

Com o tempo, acostumei-me à presença daquele retrato, mas de início fez-me confusão saber que aquele rapaz já não estava vivo, que alguém tão novo e tão bonito pudesse morrer. Sobretudo, chocou-me que tivesse morrido numa guerra que eu desconhecia e da qual ninguém falava, como se não tivesse acontecido ou fosse um assunto proibido. “Ai o meu Zé, que mo tiraram tão cedo! Maldita guerra!”Era o único comentário que ouvia dos lábios daquela mãe, dorida na voz e na alma. Eu, criança, ainda, continuava a escrever a carta, sem saber o que responder...

Mais de 30 anos depois, continuo a pensar no que lhe devia ter dito e não acho respostas. Onde encontrar palavras que confortem uma mãe que perdeu o filho?

Talvez o silêncio, com todo o seu peso, seja a resposta mais adequada a toda a loucura deste mundo, à insanidade das nações que iniciam guerras intermináveis às quais oferecem os seus jovens, o seu futuro, à morte.

Talvez o silêncio fosse, e seja, afinal, a resposta acertada perante toda a injustiça e a maldade humanas, que enchem estantes de retratos a branco e preto...