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Pezinhos de lã

Pezinhos de lã

Hoje, o meu filho faz anos

Costumo dizer que as coisas acontecem na nossa vida no momento certo, assim como as pessoas. Umas vão ficando, de forma intermitente ou para a vida, outras desaparecem, por vezes sem deixar rasto. Há as que nos ensinam a paciência, o perdão e a tolerância, outras a sermos organizados, trabalhadores e resilientes. Há as especiais que nos cuidam, dispostas a ouvir-nos, sempre, e as que nos levam para a loucura e diversão, pois a vida são dois dias ( e se têm razão!). Por vezes, com sorte, há as que nos ensinam o amor e há as que só interessam para percebermos como não queremos ser, jamais.

Tenho seis irmãos, sou tia e tia-avó de muitos meninos que, do meu modo, ajudei a criar, pelo menos nas férias de verão. Essas minhas “férias grandes” eram passadas, maioritariamente, na companhia dos meus sobrinhos, miúdos ainda (eles e eu),  que iam comigo para todo o lado: ao café, às festas da aldeia, ao rio ( que na altura ainda estava limpo), à praia. Por essa circunstância, sempre gostei de crianças e sempre desejei, também eu, ter os meus próprios filhos. Julgo até que foi esse convívio, essa partilha de afeto e esse sentido precoce de responsabilidade que, mais tarde, pesou na escolha da minha profissão, mesmo que não o soubesse, então.

Depois de acabar a minha licenciatura e já a trabalhar, aconteceu o meu filho.

 O meu filho apareceu na minha vida no momento oportuno. Nem tarde, nem cedo. Curiosamente adivinhei-lhe as feições: loirinho, de cabelos aos caracóis e de pele branquinha. Assim seria o nosso bebé, como um anjinho, dizia eu ao seu pai. Nunca acertei em jogos de sorte e de azar, mas aí não falhei. Nasceu a 14 de outubro, de 1999, mais cedo que o previsto, exatamente como o tinha imaginado, mas mais pequenino e com muita vontade de continuar no seu mundo de água, calmo e tranquilo. Nascer acaba por ser a nossa primeira grande perda e o nosso primeiro desafio. Teremos essa consciência no momento em que deixamos a segurança e o conforto da barriga da nossa mãe para entrarmos num mundo desconhecido e profundamento perigoso? Será esse primeiro choro fruto das nossas dores de parto ou já a intuição do que nos espera?

Cada velho é um jovem que pergunta o que aconteceu, li há dias. Nada mais verdade. A vida aconteceu e hoje o meu filho volta a fazer anos, é o seu 24º aniversário.

 “Ainda não escreveste nada sobre mim no teu blogue, mãe”, queixou-se há dias. E com razão. Mas sabes, filho, falar do que nos é mais precioso é mais difícil do que parece, porque as palavras, quando vêm do coração, têm de fazer um percurso maior e, por vezes, perdem-se nas curvas das memórias, dos carrinhos de brincar que tinhas e com os quais andavas sempre atrás de mim, mesmo quando ia à casa de banho, escondem-se no teu riso fácil e na fofura dos teus beijinhos e das tuas primeiras palavras, espreitam nos dentes pequeninos e branquinhos que te caíam e na moeda que a “fada dos dentinhos” se esquecia de te dar, por vezes, pois a mãe estava demasiado cansada para se lembrar de ta colocar na mesinha de cabeceira, à noite. As palavras encontram pontes caídas, de medos de febres altas e de falta de ar que herdaste da tua avó, minha mãe. As palavras também se perdem quando amam muito, mesmo quando, mais tarde, deixei de te dar beijos no portão da escola e comecei a dormir menos, de olho na tua cama ainda vazia ( e já é tão tarde, onde andará?), ou quando fizeste a primeira mala, de partida para Coimbra,  e eu a disfarçar os meus receios com  tuperwares cheios de comida, para as primeiras refeições,  “mas depois vais à cantina e comes a sopa toda, não te esqueças, João, e a fruta” ... é a vida a acontecer, filho.

Perguntaste-me, há dias, o que é que eu faria se tivesses de ir para a guerra. A questão apanhou-me desprevenida e balbuciei que, se isso acontecesse, terias de ser tu a decidir e eu aceitaria a tua escolha, por mais que me custasse , “pelo meu país, não podia recusar...”, concluíste.

 Agora, passado o tempo da resposta politicamente correta, sei que no meu mais profundo eu, tal não seria possível: tento imaginar-te vestido de verde, de capacete negro e com uma arma a tiracolo, a partir para um cenário horrível de dor, morte e destruição e juro que só consigo ver o meu menino, pequenino, a descer inseguro a rampa do colégio, com a mochila do Picachu às costas, a virar-se para mim (ainda à espera) e a acenar-me um até logo, a acenar-me um gosto muito de ti, mãe, és a melhor mãe do mundo...

O que faria eu se tivesses de ir para a guerra, meu filho?

 Provavelmente morria...

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Maria rainha, Maria mulher

Acabei de ler o romance de Isabel Stilwell sobre D.Maria I. 

Quando peguei no pesado livro, pensei que a escrita e a história teriam de ser muito interessantes para eu levar a leitura até ao fim. Não me desiludiu: excluindo as partes relativas à troca de correspondência entre a rainha e a priora da Estrela, assim como a questão do escritor inglês que desejava, a toda a força, ser aceite pela corte portuguesa, ocupando com isto uma série de páginas, a história flui e prende com todo o seu conteúdo, aliado às vastas e cativantes personagens, maioritariamente verídicas, que Stilwell traz para uma história que é a nossa, do país e da Europa dos finais do séc.XIX.

O romance centra o seu olhar na figura de D.Maria I, uma mulher dócil e frágil que tenta equilibrar todas as suas obrigações e compromissos, de filha, de esposa e de mãe, de rainha de Portugal e de cristã fervorosa. D.Maria I, Princesa da Beira, vive num tempo tumultuoso, de mudanças drásticas na Europa e no mundo.

No trono de Portugal, a rainha tenta salvaguardar a memória de seu pai, D.José I, ao mesmo tempo que procura compensar os injustiçados e as suas famílias das más decisões do falecido rei, alimentadas pelo marquês de Pombal. Como se a política interna não bastasse, com todos os assuntos difíceis que tem para resolver, ainda tem de tomar uma posição em assuntos internacionais delicados, como a independência dos Estados Unidos ou a questão das alianças de e com outros países europeus. Neste tabuleiro de política externa, joga pelo seguro e consegue, surpreendentemente, manter sempre a neutralidade do nosso país. 

Maria quer fazer tudo bem, pois é "uma santa", repete-lhe o marido, D.Pedro III, "está destinado", insiste a priora da Estrela (que, supostamente, recebe mensagens de Deus, convencendo disso a rainha ), esta controla as emoções, finge, nada deixa transparecer, mas os seus esforços nunca chegam, a sua fé imensa não consegue aliviar o seu fardo, demasiado pesado, nem pôr fim aos seus receios, à sua tristeza e melancolia.

De França surgem ventos ameaçadores: é o povo a revoltar-se contra uma nobreza ociosa e dispendiosa, a reclamar pão e justiça. São as doenças e a morte a proliferar. É uma monarquia presa por um fio. 

D.Maria I, rainha de Portugal, devota fervorosa, defensora dos pobres e de um reinado de paz, sente-se perdida e, com a morte dolorosa dos que a amparavam, nomeadamente do marido, da criada Rosa e dos filhos, sem o apoio do seu confiável confessor, pressionada por todos os lados e por um segredo impossível de cumprir, acaba por perder o seu débil equilíbrio, desmorona, cedendo à loucura...

Pouco sabia sobre D.Maria I, a rainha louca, e o que tinha lido eram sobretudo datas, tratados, decisões, pouco mais.

Olhamos para a História e para os nomes do nosso país, neste caso para a figura desta rainha, e nada sabemos sobre a pessoa, os seus hábitos, os seus gostos, os seus medos, apenas aprendemos como governou e qual o seu legado.

Mais do que a história de uma rainha, este livro de Isabel Stilwell deu-me a conhecer uma mulher enorme: culta, sensível, meiga, carinhosa, inteligente, justa, compassiva, mas também frágil, assustada, influenciável, supersticiosa, indecisa, sismada, sofrida, enfim... humana.

Aprendi, refleti, sorri, emocionei-me, distanciei-me, identifiquei-me, com esta rainha a quem pediram que fosse tudo, para todos, quando isso não é possível, pois ela era, na verdade, como todas nós, apenas uma mulher.

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