Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Pezinhos de lã

Pezinhos de lã

Hoje, o meu filho faz anos

Costumo dizer que as coisas acontecem na nossa vida no momento certo, assim como as pessoas. Umas vão ficando, de forma intermitente ou para a vida, outras desaparecem, por vezes sem deixar rasto. Há as que nos ensinam a paciência, o perdão e a tolerância, outras a sermos organizados, trabalhadores e resilientes. Há as especiais que nos cuidam, dispostas a ouvir-nos, sempre, e as que nos levam para a loucura e diversão, pois a vida são dois dias ( e se têm razão!). Por vezes, com sorte, há as que nos ensinam o amor e há as que só interessam para percebermos como não queremos ser, jamais.

Tenho seis irmãos, sou tia e tia-avó de muitos meninos que, do meu modo, ajudei a criar, pelo menos nas férias de verão. Essas minhas “férias grandes” eram passadas, maioritariamente, na companhia dos meus sobrinhos, miúdos ainda (eles e eu),  que iam comigo para todo o lado: ao café, às festas da aldeia, ao rio ( que na altura ainda estava limpo), à praia. Por essa circunstância, sempre gostei de crianças e sempre desejei, também eu, ter os meus próprios filhos. Julgo até que foi esse convívio, essa partilha de afeto e esse sentido precoce de responsabilidade que, mais tarde, pesou na escolha da minha profissão, mesmo que não o soubesse, então.

Depois de acabar a minha licenciatura e já a trabalhar, aconteceu o meu filho.

 O meu filho apareceu na minha vida no momento oportuno. Nem tarde, nem cedo. Curiosamente adivinhei-lhe as feições: loirinho, de cabelos aos caracóis e de pele branquinha. Assim seria o nosso bebé, como um anjinho, dizia eu ao seu pai. Nunca acertei em jogos de sorte e de azar, mas aí não falhei. Nasceu a 14 de outubro, de 1999, mais cedo que o previsto, exatamente como o tinha imaginado, mas mais pequenino e com muita vontade de continuar no seu mundo de água, calmo e tranquilo. Nascer acaba por ser a nossa primeira grande perda e o nosso primeiro desafio. Teremos essa consciência no momento em que deixamos a segurança e o conforto da barriga da nossa mãe para entrarmos num mundo desconhecido e profundamento perigoso? Será esse primeiro choro fruto das nossas dores de parto ou já a intuição do que nos espera?

Cada velho é um jovem que pergunta o que aconteceu, li há dias. Nada mais verdade. A vida aconteceu e hoje o meu filho volta a fazer anos, é o seu 24º aniversário.

 “Ainda não escreveste nada sobre mim no teu blogue, mãe”, queixou-se há dias. E com razão. Mas sabes, filho, falar do que nos é mais precioso é mais difícil do que parece, porque as palavras, quando vêm do coração, têm de fazer um percurso maior e, por vezes, perdem-se nas curvas das memórias, dos carrinhos de brincar que tinhas e com os quais andavas sempre atrás de mim, mesmo quando ia à casa de banho, escondem-se no teu riso fácil e na fofura dos teus beijinhos e das tuas primeiras palavras, espreitam nos dentes pequeninos e branquinhos que te caíam e na moeda que a “fada dos dentinhos” se esquecia de te dar, por vezes, pois a mãe estava demasiado cansada para se lembrar de ta colocar na mesinha de cabeceira, à noite. As palavras encontram pontes caídas, de medos de febres altas e de falta de ar que herdaste da tua avó, minha mãe. As palavras também se perdem quando amam muito, mesmo quando, mais tarde, deixei de te dar beijos no portão da escola e comecei a dormir menos, de olho na tua cama ainda vazia ( e já é tão tarde, onde andará?), ou quando fizeste a primeira mala, de partida para Coimbra,  e eu a disfarçar os meus receios com  tuperwares cheios de comida, para as primeiras refeições,  “mas depois vais à cantina e comes a sopa toda, não te esqueças, João, e a fruta” ... é a vida a acontecer, filho.

Perguntaste-me, há dias, o que é que eu faria se tivesses de ir para a guerra. A questão apanhou-me desprevenida e balbuciei que, se isso acontecesse, terias de ser tu a decidir e eu aceitaria a tua escolha, por mais que me custasse , “pelo meu país, não podia recusar...”, concluíste.

 Agora, passado o tempo da resposta politicamente correta, sei que no meu mais profundo eu, tal não seria possível: tento imaginar-te vestido de verde, de capacete negro e com uma arma a tiracolo, a partir para um cenário horrível de dor, morte e destruição e juro que só consigo ver o meu menino, pequenino, a descer inseguro a rampa do colégio, com a mochila do Picachu às costas, a virar-se para mim (ainda à espera) e a acenar-me um até logo, a acenar-me um gosto muito de ti, mãe, és a melhor mãe do mundo...

O que faria eu se tivesses de ir para a guerra, meu filho?

 Provavelmente morria...

Imagem1.png

5 comentários

Comentar post