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Pezinhos de lã

Pezinhos de lã

Mia Couto e a escrita de inventar de palavras

Mia Couto é um dos meus escritores favoritos. Li a maior parte dos seus livros e, sempre que o faço, encontro mais motivos para gostar, cada vez mais, da forma como escreve.

O que mais me fascina são as histórias e as personagens que traz para os seus romances /contos e que nos transportam, imediatamente, para África: os seus lugares, as  cores, os sons, os cheiros e as suas gentes. Mia Couto é a voz escrita de todo um povo e da sua vivência, da sua História e histórias, dos seus mitos, ritos e tradições, das suas línguas e linguagens, da sua cultura.

Há dias descobri, por meio de um programa da RTP, que as pessoas procuram o escritor para lhe contar esta ou aquela história que ouviram a um velho contar, ou um determinado acontecimento presenciado que acharam digno de registo. Procuram, inclusivamente, Mia Couto, quando inventam uma nova palavra, adequada e útil a um certo contexto ou apenas curiosa ou engraçada. Sabem que o escritor aprecia estas invenções. Mia, grande escritor e ainda melhor ouvinte, escuta com atenção (e com aquela genuína humildade que já lhe conhecemos) todos os relatos que, muitas vezes, usa depois na sua escrita. Eu acho isso incrível.

Saramago tem uma expressão parecida com esta “ Somos todos escritores, só que uns escrevem e outros não”. O que me diz esta frase é que todos temos histórias de vida para contar. Qualquer vida daria um romance. Mas, na verdade, nem todos temos o que é necessário, aquele dom de transformar as vivências em palavras, as palavras em frases e as frases em textos que alguém queira ler.  No caso de Mia, apetece-me dizer que é preciso muito desse talento, mas que é necessário, sobretudo, ter uma grande alma, um fundo muito bom e amplamente iluminado para realizar uma obra assim: a de colocar no papel não apenas as  palavras, as histórias que ouve e inventa, mas tudo o que elas são e encerram em si, tudo o que elas representam e significam.

Há anos, alguém me dizia que existem palavras para tudo,  para todas as situações, sentimentos, estados, emoções e que o problema, na realidade, éramos nós, que não as sabíamos todas. Por isso, concluia o meu interlocutor, não faz sentido dizermos, perante uma fatalidade, por exemplo, “ Não há palavras”, porque as há. Na altura achei que estaria certo, mas isso foi antes de Mia, era ainda noite.

Nem sempre as palavras que existem são suficientemente capazes de exprimir uma ideia, um conceito, um estado de alma. Por vezes e por melhores que sejam, não chegam, não têm força, substância suficiente. Isso eu aprendi com Mia e com a sua incrível fábrica de fazer palavras, a sua escrita de as inventar.

Por vezes ainda me falham as palavras para falar de certas coisas e de pessoas que já não vejo, nem abraço. Uma delas era a minha mãe. É engraçado haver pessoas que não são muito de palavras, são mais de risos e de olhares. A minha mãe era assim. Tinha um vocabulário muito reduzido, talvez porque a vida dura que teve dispensasse grandes conversas. No entanto, em caso de necessidade, também ela inventava.

Uma dessas palavras era o famoso “desinfeliz”. Cheguei a corrigi-la, mas depois deixei-a repetir as vezes que lhe apeteceu. Não teria adiantado de muito explicar-lhe que já existe o adjetivo infeliz, antónimo de feliz, e que o prefixo in ... (blá, blá, blá)... Quando parei para pensar nesta nova palavra, que ela insistia em usar, percebi o seu significado e a urgência da sua existência. Um rapaz desinfeliz não é só infeliz ( o que já não seria pouco),  ele é ainda mais do que infeliz, duplo prefixo, duplamente infeliz: desinfeliz dá maior intensidade à ideia de infelicidade do rapaz, quando o superlativo não resulta ( já imaginaram uma camponesa a dizer- Ai, coitado do rapaz, anda infelicíssimo).

Bravo. Embrulha, Colette!

Gostaria que a minha mãe soubesse que também eu fiquei desinfeliz com a sua partida.

Felizmente, ela deixou-me as palavras.

 

 

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