Querida mãe
Hoje, recupero um texto que escrevi há uns anos. Foi publicado no jornal da escola onde eu trabalhava, no espaço da "Crónica sem vergonha". Agora, talvez sugerisse a alteração da rubrica para "Crónica com orgulho", pois é orgulho que sinto quando recordo os meus pais, infelizmente já desaparecidos, as pessoas simples, íntegras, autênticas e generosas que eram e assim ficarão, para sempre, no meu coração e na minha memória.
"A minha mãe morreu a 4 de janeiro de 2006. Não consegui, durante muito tempo, imaginar o que seria o resto da minha vida sem ela. Não se ultrapassa a morte de uma mãe, pois não há nada neste mundo que a substitua. Comemos rebuçados de mentol para compensar a falta do cigarro, trocamos de carro, de casa, de emprego, de cidade, de amigos e até de amores, mas não trocamos a nossa mãe por nada. A nossa mãe sabe sempre o que nos vai na alma. Faz o nosso prato preferido quando a visitamos, acende aquela magnífica fogueira ou o fogão a lenha e nada se iguala ao cheiro que emana dos seus cozinhados, ao calor do lume e dos seus braços. Ela é o alicerce, a casa, a força que empurra e faz andar as nossas vidas e o mundo.
Com tenra idade, a minha mãe deixou a aldeia e partiu para "servir", em Lisboa. Os tempos eram difíceis e cabia aos irmãos mais velhos ajudar a sustentar a família. A minha avó, viúva, com sete bocas para alimentar, não viu outro remédio senão aceitar que os filhos, ainda crianças, fossem trabalhar, nem que fosse por uma tigela de caldo e um abrigo. As raparigas tinham mais sorte e, normalmente, eram requisitadas como criadas, nas grandes cidades, nas grandes casas, dos grandes senhores. Era assim a sociedade de então, já tão estratificada e injusta, onde a infância era roubada e maltratados os meninos, a quem era exigido que fossem adultos ( "o trabalho do menino é pouco e quem não o aproveita é louco", diz a sabedoria popular...)
Só muito tarde decidi arrumar o quarto dela: dei as roupas e o calçado e guardei os óculos de ver, de massa cor de rosa. Tentei arrumar na minha cabeça que a tinha perdido. Como se arruma na nossa cabeça a morte da nossa mãe? Deixamos sempre para mais tarde as decisões difíceis. É uma forma de adiar os problemas, esperando que uma força superior os resolva, sem dor, sem lágrimas, sem perdas, sem arrependimentos. Alguém me diz como se arruma, na nossa cabeça, a morte de uma mãe? Como se aceita que não a voltamos a ver, a ouvir, a beijar?
Em Lisboa, a minha mãe sofreu muito. Era uma pobre rapariga da aldeia que nada entendia de cozinhados, rendas ou ferros de engomar. A patroa era uma mulher dura, exigente, que adotou, como método para educar os filhos, as criadas e o marido, uma espécie de regime militar. O Toninho e o Manelinho não podiam pisar o risco, pois esta mãe ditadora não perdoava e transformava-se no pior carrasco da história da humanidade. Com as criadas não se atrevia a tanto, mas também as castigava, humilhando-as, fazendo-as repetir vezes sem conta a mesma tarefa, até ficar perfeita. "Isaura, esta camisa está mal passada. O senhor não pode andar na rua com uma camisa neste estado". Mergulhava-a novamente no tanque de lavar a roupa e a Isaura tinha de recomeçar a operação. " Ficava-lhe com uma raiva, nem imaginas!", confessava muitos anos depois. " O que será feito dos meninos? Que pena que eu tinha deles, levavam tanta porrada...", concluía.
(Agora já consigo falar dela. Sem raiva de não a ter ao meu lado, sem revolta por me ter deixado tão depressa, quase de surpresa. Consegui arrumar o quarto e deposito flores na sua campa, mas dói, continua a doer esta ausência imposta, cruel - esta terrível saudade).
A minha mãe era uma mulher muito bem-disposta. Na sua mesa havia sempre lugar para mais um e partilhava, generosamente, o que tinha. Adorava estar rodeada de gente feliz, que escutava atentamente as suas histórias e canções. Mesmo quando a doença a impediu de ter uma vida com qualidade, presenteava os filhos com as "modas" aprendidas na sua mocidade, em Lisboa. Recordo a quadra de uma, em particular, a que ela chamava de "A maldade das mulheres". Não conheço a autoria, mas imagino-a cantada por uma voz e um estilo únicos, ao jeito do Marceneiro. Era, mais ou menos, assim: " As mulheres são interesseiras, falsas e coscuvilheiras, não se engana quem disser. Sempre a falarem da vida, não há língua mais comprida, do que a língua das mulheres". Os risos soltavam-se à sua volta e as cantigas lá continuavam, noite fora, como se o tempo tivesse ali parado, como se nada mais interessasse para além daquele lugar, daquelas gentes simples, da mesa, cúmplice da nossa alegria.
A minha mãe brilhava mais que as estrelas reluzentes das noites de verão... e sabia-o..."