Um postal de Detroit
Depois da Autobiografia, de José Luís Peixoto, decidi ler Um postal de Detroit, de João Ricardo Pedro.
Já conhecia o autor, pois lera o seu romance de estreia O teu rosto será o último. Confesso que comprei este livro pela originalidade do título, mas a sua leitura foi uma autêntica surpresa (como assim, primeiro romance, escrito na sequência de uma situação desemprego?).
Entretanto, chegou-me às mãos o seu segundo romance, cuja leitura me deixou de rastos.
Não é um livro fácil e acredito que escrevê-lo também não o tenha sido. Diria, até, que João Ricardo Pedro desceu aos infernos, abriu as gavetas mais sombrias e soltou todos os fantasmas e demónios possíveis e imaginários que encontrou para construir esta narrativa.
O livro tem por base o maior acidente ferroviário ocorrido em Portugal, em 1985 . A partir desse evento, real e dramático, o autor constrói uma narrativa onde cruza a vida de uma família que perdeu um dos seus elementos nesse acidente, a jovem Marta, com a vida de outras famílias e pessoas, mesmo que, à priori, sem relação.
O narrador, irmão de Marta, mergulha o leitor numa narrativa recheada de personagens bizarras que mantêm laços, muitas vezes, estranhos e incompreensíveis.
O que mais dói, neste romance, é a confusão entre o que é suposto ser "real", (sendo que à exceção do acidente, tudo aqui é ficção, bem o sabemos "Quanto ao resto tudo é inventado") e o que é fruto da imaginação (ou melhor, demência?) do narrador. De facto, ele é, assumidamente, um doente tratado por doença do foro psiquiátrico.
Por isso, o cruzar inusitado desses planos provoca uma certa confusão no leitor, mas é também, a meu ver, o que torna este livro único e intrigante .
Consequentemente, a sua leitura será um exercício difícil, mas muito interessante.
Para mim, a forma como o narrador transporta o leitor para a história, que é a sua, expondo-se, deixando-o penetrar no mais íntimo e profundo de si, dos seus pensamentos, medos, frustrações, desejos, complexos, enfim, na sua loucura, chega a ser acutilante e bastaria para justificar a leitura deste livro.
Mas depois, há tudo o resto: Lisboa, o seu submundo e os seus personagens; fantásticas descrições queirosianas de figuras, objetos e lugares; diálogos absolutamente incríveis; situações de humor, de rir às gargalhadas; índios e cowboys e a fantasia de um menino; os únicos anos 80; inteligentes e numerosas referências a várias formas de arte: pintura, ópera, literatura; a paixão pelo Sporting e pelo futebol (tinha que ser...); jogos de palavras inesquecíveis (punk-queque- panqueca para uma punk) e tantas outras razões...
Este livro, aparentemente na linha do romance negro fala, essencialmente, sobre a perda repentina de alguém que nos é muito querido e de todas as implicações que esse acontecimento traz à nossa vida, presente e futura.
Fala da tristeza levada ao extremo da nossa loucura, da solidão aterradora, sem fim.
Mas fala também das coisas boas da vida: de amor, de compaixão e de esperança. Fala de estorninhos-malhados, de malhas brancas na plumagem que entram em quartos vazios e de frutos que em breve estarão prontos para serem apanhados.